por Antonio Cechin
Nos últimos tempos, a “mui leal e valerosa” capital dos pampas, vive sob a síndrome da invasão de uma horda de “bárbaros”. O povo da rua, considerado pela classe dominante como pária da civilização urbana, ralé, escória da sociedade, foi chegando de mansinho, não raro descalço ou apenas de chinelinho de dedo, magro, esfarrapado, desgrenhado, doente , como um João-Ninguém e quejandos depreciativos, num trôpego pé ante pé, tirando proveito do anonimato normal de ser apenas mais um dentro da multidão, arrastando apenas , entre os braços erguidos rumo aos céus, grudados os seus dois membros superiores aos dois varais do seu tosco meio de transporte – sua cruz de todos os dias – sem nunca perder de vista o coração da cidade em seu horizonte.
Com a maior cara de pau – sempre no dizer das más línguas – por incompreensível descuido da sociedade civil, ele, sua majestade o catador, não pouco atormentado por uma sede atroz rumo ao pote, acabou por ocupar nada menos que o centro histórico da orgulhosa capital do gauchismo. E, cúmulo dos cúmulos, na base de peitaços, implantou até uma cidadela, fortificada por todos os lados, no exato lugar em que passou a adquirir o máximo de visibilidade para todo e qualquer viajante ou turista que entre ou saia da cidade. Acrescente-se a isso tudo a irreverência assumida de batizar seu conjunto habitacional com nome de santo: Vila Santa Teresinha.
Como se quem é pobre, fraco e sobretudo mal amado, não se sentisse dado por natureza a invocar os céus quando da terra recebe exclusivamente sinais de desamor e desprezo. A ideia do nome de sua fortificação nasceu nas mentes dos vileiros como sinal de gratidão ao “pequeno resto de Israel” que os acolheu benignamente. Apenas algumas mulheres piedosas da igreja Santa Teresinha, o templo mais próximo da cidadela. Talvez até com desconhecimento total da vida da Santa, acertaram na mosca. O diminutivo que foi acrescentado ao nome de santa Teresa Martin, foi historicamente acrescentado para designar a espiritualidade por ela cultivada em vida: é a santa da infância espiritual, digna portanto dos lázaros metropolitanos, os últimos dentre os pequeninos da urbs.
Como nada acontece por acaso, atrevemo-nos a dizer: foi a fé que “remove montanhas” a que salvou esse Zé povinho, como aliás repetia sempre de novo Jesus de Nazaré, quando da realização de algum milagre: “foi a tua fé que te salvou!” E por que não acrescentar? Foi o próprio carinho do Deus Amor, que jamais abandona as criaturas humanas pequeninas e fracas, porém feitas à sua imagem e semelhança”.
Apesar da escolha do nome de Santa Teresinha do Menino Jesus, numa espécie de extensionismo de si próprios em sua pequenez perante os homens, considerando-se pessoalmente e à sua categoria social, os diminutos e últimos dos mortais, mau grado isso tudo, a sociedade civil envolvente teima em continuar designando Vila dos Papeleiros o lugar em que residem os novos ocupantes. As classes dominantes descartam propositalmente o nome escolhido por unanimidade pelos últimos chegados ao centro, o povo da rua.
Na experiência diuturna, o desprezo que sofrem por parte dos que se orgulham da cidadania, acontece de modo especial quando, quais autênticos animais de tração, se dispõem a cruzar sinaleiras com suas pesadas cargas. São assacados com buzinaços por trás. Não satisfeitos com o fuzuê, os almofadinhas, ao ladearem-nos com seus carrões marca primeiro mundo, de lambuja, ainda lhes atiram algum palavrão.
Sob o pretexto de realização da Copa do Mundo em Porto Alegre, o vereador de partido conservador, no arrastão da chapa de eleição para prefeito, conseguiu emplacar as mordomias de vice-prefeito com zero votos, em data de 7 de outubro próximo passado. O vice-prefeito que teremos de suportar durante mais quatro anos, é ao mesmo tempo autor da famigerada Lei das carroças, que obriga o poder público a limpar a cidade da “poluição” dos carroceiros, dos carrinheiros e do povo da rua. Em vez de limpar a cidade do lixo, terá a desfaçatez de limpar a cidade daqueles que, por vocação, como carroceiros, gratuitamente, trabalham para tirar deveras a cidade do lixo e, estes sim, de lambuja ainda prestam o maior serviço ao planeta despoluindo os mananciais porque mais limpos devido ao serviço prestado de impedir que o lixo continue a ser jogado dentro dos caminhos das águas que são os rios, arroios, lagos e mares.
O que se pode prever para os próximos quatro anos? Está decretada a operação final ou morte dos carroceiros, dos carrinheiros e povo da rua. A malsinada lei, por enquanto, é apenas um símbolo, sinalizando no presente o já processo avançado de substitutivos mais modernos à ultrapassada catação carroceira e carrinheira, marca século XIX.
Vai se consagrar na cidade, especialmente entre a classe dominante, a preocupação apenas estética face ao lixo. Querem-no o mais longe possível dos olhos, nem que seja embaixo dos tapetes. Se possível, despachá-lo para a lua ou qualquer outro planeta. É covardia demasiada!
Em atitude totalmente contrária, o povo da rua tem os olhos bem abertos para não dizer escancarados para os resíduos sólidos como verdadeiro luxo em vez de lixo, pela preocupação que tem, dia e noite, com possíveis fontes de sobrevivência própria e da família. Mudaram até com sua desprezível catação a própria definição de lixo. Para eles, como profetas da ecologia e médicos do planeta que são, lixo é luxo, repleto de valores que os ricos desprezam. Devolvem às fábricas o que há de valor nos descartáveis dos ricos e ao mesmo tempo preservam os mananciais, símbolo por excelência da vida em plenitude.
Trava-se na cidade a guerra do fim do mundo já preconizada e anunciada na Rio+20: Biófilos contra necrófilos ou, mais simples, a guerra dos amantes da vida contra os amantes da morte.
O verdadeiro pavor que se estendeu pela cidade inteira e que redundou em lei radicalmente contra o povo da rua em geral, é em tudo semelhante ao terror que tomou conta dos cidadãos da Europa, face às hordas de bárbaros que as invadiram, no início da Idade Média, ano de 455 e seguintes.
Naquela época, os povos circunvizinhos ao poderoso império romano já em decadência, foram rotulados de bárbaros, no sentido de selvagens, pelos moradores do império, em contraposição aos cidadãos civilizados que se consideravam eles, os de origem romana ou Greco-latina. Esses bárbaros arrivistas, em levas sucessivas, constituídas de Alanos, Anglos e Saxões, Francos, Lombardos, Burgúndios, Vândalos, Visigodos, Suevos e Ostrogodos, invadiram cidades e campos dos mais diferentes países e das mais diferentes etnias que faziam parte do continente.
Dentre os citados, os Hunos foram os mais violentos e ávidos por guerras e pilhagens. Eram nômades como nosso povo da rua hoje. Não tinham habitação fixa e viviam a percorrer campos e florestas. Eram excelentes criadores de cavalos. Como não construíam casas, viviam em suas carroças e às vezes também em barracas, que armavam nos caminhos que percorriam. A principal fonte de renda dos Hunos era a prática do saque aos povos “civilizados.” Quando chegavam numa região, espalhavam o medo, pois eram extremamente violentos e cruéis com os inimigos. O principal líder deste povo foi Átila, responsável por diversas conquistas em guerras e batalhas. Pela Europa Católica, Átila recebeu o apelido de “flagelo de Deus” que com esse cognome ficou imortalizado na história universal.
No julgar da classe burguesa da Porto Alegre de hoje, foi atrevimento demasiado, o fato dessa miserabilidade toda surgida não se sabe donde, mais esfarrapada do que os históricos farrapos do farroupilhismo, a ponto de o próprio Marx, grande analista social, com sumo desprezo, rotular essa categoria social como lumpen proletariat, caracterizando-os como imprestáveis para qualquer mudança ou revolução. Serve apenas para ser jogado fora como imprestável para qualquer coisa, uma inutilidade total. Tratar-se-ia de seres humanos funcionando como simples “combustível da sociedade consumista.”
Alto lá, orgulhosos cidadãos de Porto Alegre!... Devagar com o andor dessa empáfia!... Na outra ponta, a dos fracos e últimos periga se esconder a base de um autêntico humanismo.
“Os princípios do humanismo cristão proclamam que “em casos de extrema necessidade todas as coisas são comuns” (in extrema necessitate omnia sunt communia). Porque “a distribuição e apropriação das coisas que derivam do direito humano, não podem impedir que estas coisas socorram as necessidades dos homens. Por isso, todo aquele que tem demais, deve aos pobres para seu sustento. E se a necessidade de alguém é tão grave e tão urgente que é preciso socorrê-la com a primeira coisa que se tem na mão..., então, qualquer um pode aliviar a sua necessidade com os bens dos demais, tanto retirando isso publicamente, como secretamente; e esta ação não se reveste com o caráter de roubo, nem de furto”. Estas palavras não são de algum prefeito, nem do inominável Karl Marx. Elas são de Santo Tomás de Aquino, um dos pilares do humanismo cristão e que viveu em plena era medieval, e que podem ser encontradas na Summa Theologica”.
Imaginem só: O maior filósofo-teólogo-santo da Madre Igreja, colocando em mãos do povo da rua a estratégia e a tática consolidada durante toda a história universal de ocupação da terra ordenada pelo próprio Deus Criador. Ocupação pacífica de todo e qualquer lugar que se faça necessário à sobrevivência, quanto mais quando a “invasão” é de algum terreno baldio, de alguma ruína, de algum túnel desativado, os ditos elefantes brancos do meio urbano, como os catadores desde que começaram a existir, sempre fizeram O Nazareno dedicou-lhes uma das oito bem-aventuranças quando proclamou, no sermão da montanha “bem-aventurados os mansos porque possuirão a Terra”. O direito do pobre, estabelecido por Deus desde sempre é o da posse da terra. O direito de propriedade é fabricado pelos ricos a fim de amealhar riquezas e sempre mais riquezas.
O artigo foi publicado no site do IHU Unisinos, edição de 05/11/12.
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