“Quão numerosas são tuas obras, Iahweh, e todas fizestes com sabedoria! A Terra está repleta das tuas criaturas”. (Salmo 104,24)
Compartilho com amigos e amigas, leitores do blog Olhar Ecológico que no dia 28 de março tive a defesa de dissertação de mestrado em Teologia na PUCRS. Meu orientador foi o Professor Dr. Luiz Carlos Susin, frei Capuchinho que também foi meu professor na graduação em Teologia na ESTEF. Também estiveram na Comissão Examinadora, a Professora Drª. Marileda Baggio, da PUCRS e o Professor Dr. Valério Guilherme Schaper, da EST.
Com o título “JUSTIÇA E PAZ COM A CRIAÇÃO” e o subtítulo: “A Ecologia em interação com Justiça e Paz na experiência prática e reflexiva do Conselho Mundial de Igrejas”, procuramos trabalhar o tema da ecologia no movimento ecumênico mundial a partir das duas últimas décadas.
Desde o advento da globalização de um mundo em mudança de época, persentimos um clima de injustiças, onde a vida criada por Deus é vilipendiada em nome do lucro. Num tempo marcado pelo descuido e ameaças de escassez e privatização dos recursos naturais, a humanidade e a Terra sentem o drama das mudanças climáticas. Já vem sendo, portanto, hora de se perguntar pela fé no Deus Criador. O que as igrejas cristãs dizem e fazem e/ou o que mais elas poderiam e deveriam dizer e fazer frente aos problemas ambientais? Pois, foi com esta preocupação que nos empenhamos em pesquisar a ecoteologia do Conselho Mundial de Igrejas (CMI). Esta pesquisa tem como argumento a experiência prática e reflexiva do CMI sobre ecologia em interação com justiça e paz, a partir da convocatória ecumênica mundial de Seul, em 1990. E, também procuramos fazer contraponto com a ecoteologia de Leonardo Boff e um link com a experiência da Pastoral da Ecologia na CNBB Sul 3.
Seguindo a lógica do método Ver-Julgar-Agir, a dissertação procura demonstrar a trasnversalidade da ecologia do movimento ecumenico mundial liderado pelo CMI. A pesquisa está focada nos documentos do programa “Justiça, Diaconia e Responsabilidade com a Criação”, mais especificamente o projeto “Ecojustiça”, da Comissão de Assuntos Internacionais do CMI. Ecojustiça é a consonância de uma longa tradição do Conselho Mundial de Igrejas em abordar as relações transversais entre Justiça, Paz e Integridade da Criação (JPIC). O CMI faz uma releitura da Bíblia e, num olhar ecológico, com uma atenciosa escuta da profecia da Terra e dos pobres, vem chamando as igrejas a reassumirem sua alinaça de justiça, amor e paz com Deus criador e defensor da Vida.
O Conselho Mundial de Igrejas (CMI) está presente e é reconhecido em todo o mundo como “uma comunhão de igrejas que confessam o Senhor Jesus Cristo como Deus e Salvador, segundo as Escrituras”. O CMI é um espaço onde as igrejas-membro podem refletir, falar, agir, adorar e trabalhar em conjunto, testemunhando sua fé na unidade e no serviço.
Com 349 igrejas, trabalhos em mais de 110 países e uma presença territorial que abrange todo o mundo, onde representa mais de meio bilhão de pessoas, esta é a maior organização do movimento ecumênico moderno e tem como objetivo central a unidade dos cristãos. Fundado em 1948, quando a maior parte das igrejas fundadoras eram européias e estadunidenses, hoje a maioria das igrejas-membro do CMI está na África, Ásia, Caribe, América Latina, Oriente Médio e no Pacífico.
1 Causamos uma grade fúria na Terra
O título do primeiro capítulo do nosso trabalho pode soar estranho aos ouvidos da alma de quem ler que “Causamos uma grade fúria na Terra”, assim como uma verdade também pode ser inconveniente. Mas, de fato, estamos diante de uma situação de fúria da natureza e precisamos procurar compreender isto e ver até onde vai nossa responsabilidade. A palavra fúria aparece em nomes de filmes e em mitologias antigas trazendo a ideia de força desordenada contra vida. Também nos dá a ideia de caos e trevas (cf. Gênesis 1:2).
O início do curso deste mestrado foi exatamente no ano do 20º aniversário da Convocatória Ecumênica Mundial do CMI em Seul, quando as igrejas cristãs passaram a ter, de modo global, uma preocupação com o meio ambiente. As igrejas membro do CMI deram este passo significativo e, no mesmo ano (1990), o papa João Paulo II abordou a temática ambiental na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz. São, portanto, 20 anos que se expressa com mais convicção e força a preocupação ambiental nas igrejas cristãs. A Convocatória Ecumênica Mundial de Seul, na Coréia do Sul em março de 1990, trabalhou a dimensão “Justiça, Paz e Integridade da Criação” (JPIC), do CMI, com o objetivo de “traçar projetos para uma ação ecumênica que possibilite superar os problemas causados pela injustiça, violência e pela degradação do meio ambiente”.
Mas antes da Convocatória de Seul, ainda em 1974, houve em Bucareste, na Romênia, uma consulta sobre Igreja e sociedade, onde entra a questão da sustentabilidade. E a partir desta consulta, o movimento ecumênico mundial, assumiu o compromisso com “Sociedade Justa, Participativa e Sustentável” (JPSS), levando em consideração a questão da “terapia de limites ao crescimento”, abordada pelo Clube de Roma, que havia se reunido em 1972, quando pela primeira vez aconteceu um encontro mundial para tratar de questões ambientais. Lembrando que no mesmo ano (1972) também aconteceu em Estocolmo, na Suécia, o primeiro encontro mundial promovido pela ONU. E após o encontro de Seul, ocorreram outros eventos ecumênicos que levaram adiante as questões relacionadas com justiça, paz e ecologia, entre eles a participação das igrejas cristãs na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança Climática no Rio de Janeiro, Brasil - junho de 1992. Foram, portanto, 20 anos de uma caminhada de denuncia e anúncio por parte das igrejas cristãs, através do CMI.
O Conselho Mundial de Igrejas tem a percepção clara de que impactos ambientais sempre ocorreram, mas agora acontece algo muito mais grave no Planeta Terra. O ser humano provocou grandes alterações, causou enormes e perversas mudanças que afetam todo o organismo da Terra. Por isso, entrou em nosso cotidiano o termo crise ecológica, também chamada de crise ambiental. Mas, o grande mal da Terra é a cultura global do estilo de vida baseada no consumo exagerado, vivenciado majoritariamente pelas elites dos países desenvolvidos e em desenvolvimento. E a ecologia nos faz ver a nossa crise na sua complexidade e não de forma fragmentada. E assim, a reconhecemos como a crise da civilização, que afeta a vida como um todo. Leonardo Boff afirma que são duas crises. Uma é a notória crise da desarmonia dos ecossistemas e chama a atenção para outra crise, que é a crise do paradigma civilizacional. O atual modelo de sociedade é que está em crise e vencido. E nos damos conta de que já não vivemos mais numa época de mudança, como tantas e tantas que se passaram. Agora estamos vivenciando a própria mudança de época. E não podemo dizer, simplesmente, que o planeta chegou ao seu limite, mas é preciso aceitar que a nossa civilização, nosso modo de vida é que está no limite e não podemos continuar neste ritmo.
No documento AGAPE (Alternative Globalization Addressing Peoples and Earth ou Alternativa de Globalização Abordando o Planeta e a Ecumene - Globalização Alternativa Comprometida com a Humanidade e o Planeta Terra), o CMI denuncia que: a globalização econômica e as estruturas de comércio e finanças estão alargando cada vez mais o abismo, as diferenças entre ricos e pobres e causando uma grande ameaça à paz mundial e a paz com a Terra. A globalização, que é um processo perverso para o meio ambiente, abriu as fronteiras para a exploração, fechando os caminhos da solidariedade.
O Conselho Mundial de Igrejas tem levado muito a sério o quarto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), de 2007, que é o principal apresentado em 20 anos, com um consenso científico esmagador sobre as emissões de gases de efeito estufa. O CMI entende que quando o relatório do IPCC usa o termo “muito provável” para indicar que as emissões de combustíveis fósseis e outras atividades humanas são as principais causas das mudanças climáticas, quer dizer que pelo menos a 90% dos fenômenos da mudança climática são resultados das ações humanas.
Leonardo Boff vem ajudando a difundir e tornar mais próximo das pessoas um importante documento internacional, que é a Carta da Terra, o qual ajuda a situar o atual momento político, social e econômico, iluminando a leitura crítica do atual modelo de desenvolvimento global, alicerçado no lucro econômico, sem se importar com a real situação da Terra e sua biodiversidade. No seu Preâmbulo, a Carta da Terra analisa que “estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro”. Mas ressalta que “à medida que o mundo torna-se cada vez mais interdependente e frágil, o futuro enfrenta, ao mesmo tempo, grandes perigos e grandes promessas” (cf. BOFF, 2000. p. 147-164).
Diante deste cenário global, o Conselho Mundial de Igrejas também se preocupa com o descuido e a escassez de recursos da natureza, a começar pela questão da água. Este é um assunto presente em todo o mundo e junto com o discurso da escassez, entra o interesse econômico de transformar a água em mercadoria. Por isso o CMI vem mobilizando as igrejas para a Rede Ecumênica de Água, cuja sigla em espanhol é “REDA” e em inglês “EWN”, que é uma iniciativa para garantir o acesso à água para as pessoas ao redor do mundo. A água que deveria saciar a sede e atender as necessidades das populações, cada vez mais está sendo usada para matar a sede voraz do mercado. E o mercado está rotulando, codificando os recursos naturais, que são “toda a criação - uma realidade sagrada que não deve ser codificada”. Ou seja, os recursos naturais estão recebendo um significado diferente, são rotulados como mercadorias e deixam de ser direitos de todos.
Para o Conselho Mundial de Igrejas, existe uma estreita relação entre pobreza, riqueza e ecologia. Pois, o luxo e a opulência sem fim dos ricos é a degradação e a finitude da natureza. Os 20% mais ricos do mundo consomem 86% dos bens e serviços globais. A renda anual dos 1% mais ricos equivale à dos 57% mais pobres. E as pesquisas indicam que perderemos, por exemplo, entre 30 e 70% da biodiversidade do mundo num período de 20 a 30 anos. O CMI também trabalha a questão das dívidas externas, denunciando que a forma de como foi conduzida a economia mundial nas últimas décadas, fez com que os países pobres fossem golpeados com enormes dívidas. E seus ditos credores externos são verdadeiros ditadores de suas vidas internas, tanto para o campo econômico, como para o social, o político e o ambiental.
A dívida dos pobres é o grande trunfo dos ricos para dominá-los e, à custa deles, continuar enriquecendo. Porém, a dívida está ao avesso. Quem deve não são os pobres e sim os ricos que enriqueceram sob exploração social, econômica e ecológica. Para o CMI, são dívidas ecológicas e ilegítimas, e afirma que existem dois tipos de dívidas ilegítimas. Um tipo de ilegitimidade das dívidas dos pobres para com os ricos está relacionado à forma de como e por quem elas foram contraídas. E a obrigatoriedade e a imposição aos países pobres em pagar dívidas financeiras também é ilegítima no momento em que a efetivação desses pagamentos negam direitos humanos fundamentais, como o alimento, a moradia, o atendimento à saúde e educação, entre outros. Os ricos é que são os grande devedores de uma dívida ecológica. Pois, informações da ONU dão conta de que 20% da população consome 80% dos recursos naturais do planeta e vivem nos países do norte. Por isso, eles têm uma enorme dívida ecológica. Os 20% da população mundial que vive nos países mais ricos fazem 86% de todas as compras de consumo; eles consomem 58% de toda a energia e por sua conta correm 53% de todas as emissões atuais de carbono (e 80% em termos históricos). Na verdade os ricos têm uma enorme dívida com os pobres, com as futuras gerações e com a natureza.
2 Do Princípio à Plenitude da Criação
O “Julgar”, para nós cristãos, é buscar luzes na Palavra de Deus. E no tema da ecologia temos a possibilidade de “olhar a criação do princípio a plenitude”. A Bíblia nos dá a orientação de que a ecologia é uma questão de fé. Por isso, no segundo capítulo abordamos o tema da criação, lendo no relato bíblico que Deus criou a vida para a plenitude e não para a degradação. E Deus criou em diálogo e em cooperação com as próprias criaturas e criou a vida em contínua evolução para um destino de plenitude, que não é algo pronto ou estático nem infinitamente longínquo, mas que está na criação, em sua raiz. Pois, toda a humanidade é feita à imagem e semelhança de Deus e toda a natureza traz as marcas de Deus. Desde o princípio, a criação tem a energia cósmica (de cosmos) e a força criadora do Espírito de Deus, que continua presente e atuante na criação. A criação não é algo que só aconteceu apenas no princípio (creatio prima), mas é algo que está acontecendo agora (creatio continua).
A Bíblia nos permite compreender que os “recursos naturais” são dons de Deus e por isso, direito de todas as criaturas. O jubileu bíblico declara que a terra pertence a Deus. Tudo o que pertence a Terra, toda a sua biodiversidade é dom de Deus. Considerar, por exemplo, a água um dom de Deus, implica que ela, na sua forma saudável, limpa e fresca, deva estar disponível para atender as necessidades básicas de todos. Portanto, jamais poderia ser uma mercadoria, porque o preço impõe barreiras de acesso, excluindo os mais pobres.
A ecologia, para o cristianismo, é mais que uma ciência que estuda as interações da vida, é também uma questão de fé. E, por isso, o assombroso assunto das mudanças climáticas do nosso tempo, deve ser encarado também com espiritualidade, mística e fé. Neste sentido, o CMI criou o “Serviço de Oração pela Justiça Climática”. Para o CMI, o engajamento religioso [na questão ambiental] é demonstrar que a mudança climática é mais que uma preocupação científica, ecológica, econômica e política, mas tem importantes dimensões espirituais e éticas. A mudança climática é vista pelo CMI como uma questão profundamente ética e espiritual. Por isso, a espiritualidade ecológica é uma força para a comunidade cristã enfrentar com justiça a questão climática numa atitude profética, denunciando o clima de injustiças e anunciando boas novas para toda a criação.
Dom Rowan Williams, primaz da Igreja Anglicana diz que o mandato de Jesus aos discípulos, expresso em Marcos 16:15, é para que seja anunciada uma Boa Nova para toda criação e não limitadamente aos seres humanos. “A tarefa dos fiéis não é simplesmente ir e comunicar algumas poucas ideias a alguns seres humanos promissores”. É transformar a face da terra. E anunciar boas novas para toda a criação significa fazer a opção pelos pobres, se solidarizar com as vítimas da crise ambiental.
Seremos anunciadores de boas novas para toda a criação, também, se soubermos auscultar os gritos da vida, que hoje está clamorosa por causa das ações humanas. Primeiro a criação é comunicação de Deus pela sua beleza, pelos seus dons e generosidade. E agora a natureza é profecia, porque reclama para toda a humanidade que o Criador está sendo ofendido na sua criação degradada pelas ações humanas. Por isso, nossa vocação é anunciar boas novas para toda a criação, preservando-a das ameaças e lendo seus sinais proféticos.
Parafraseando Lucas 19:40, onde diz “se eles se calarem, as pedras gritarão”, podemos dizer que, onde impedimos a vida de brotar e florir, onde calamos, silenciamos e amordaçamos a vida, agora estão brotando e desabrochando clamores de denúncia. Onde impedimos a vida de florir e sorrir, agora a natureza clama através de catástrofes e desequilíbrios que são sinais visíveis da perversidade do ser humano, que se esqueceu de ser o jardineiro da Terra. As mudanças climáticas são consequências de uma mentalidade humana que considera a natureza como um objeto a ser dominada, explorada e manipulada.
Defrontamos-nos cotidianamente com o grito do oprimido e do excluído e a Terra também grita sendo agredida pela máquina depredadora e mortífera de nosso modelo de sociedade e desenvolvimento. A Terra é a profetiza que grita no deserto das mentes e corações humanos, mas o seu clamor ecoa cada vez mais como esperança de vida. Por isso, para a Pastoral da Ecologia do Rio Grande do Sul, nas palavras de seu fundador, Irmão Antônio Cechin, os catadores de materiais reciclados são verdadeiros profetas. Eles andam pelas ruas da cidade com seus carrinhos recolhendo as sobras, e assim denunciam o consumismo desenfreado, que resulta em toneladas de lixo. Cechin costuma dizer que “eles [os catadores] são os grandes heróis nacionais do meio ambiente” e os “médicos do Planeta”, que dão um diagnóstico da doença que precisa ser tratada para salvaguardar a vida na Terra.
3 Temos uma Aliança com o Criador
Consciente de que a humanidade trilhou um caminho contraditório, marcado por um comportamento devastador, justificado, inclusive, pelo preceito bíblico “dominai e multiplicai”, o CMI passou a buscar uma iluminação bíblica, numa ótica ecológica, para compreender o autêntico sentido de “Bereshit” (o princípio do universo). E o resultado é uma compreensão sobre o princípio da vida, “Bereshit”, que se afirma em “Shalom” (a plenitude de justiça e paz com a criação). E a Convocatória Ecumênica Mundial de Seul, em 1990, com o tema “Justiça, Paz e Criação”, levou a reflexão para além de “Bereshit” e “Shalom” (do princípio à plenitude da criação) firmando-se em “Berith” (temos uma aliança, um pacto com o criador). Berith (uma aliança solidária, de amor, justiça, paz e ecologia, entre Criador e criaturas) é o ponto alto da ecoteologia do CMI (cf. MAÇANEIRO, 2011).
Rompendo com o paradigma propagador da morte, que é a globalização neoliberal, o CMI defende uma visão afirmadora da vida, que é a da “oikoumene” – uma comunidade da Terra onde todos os povos vivem em relações justas entre si, com toda a Criação e com Deus. O lugar das igrejas é onde Deus está atuando, Cristo está sofrendo e o Espírito está cuidando da vida e resistindo aos principados e poderes destrutivos.
Por isso, as igrejas, comunidades eclesiais e congregações, dando testemunho de unidade, precisam: Zelar pela rede da vida e pela rica biodiversidade da Criação; engajar-se pela mudança de padrões insustentáveis e injustos de extração de jazidas e de uso dos recursos naturais, particularmente levando em consideração os Povos Indígenas, suas terras e suas comunidades; apoiar movimentos, grupos e iniciativas internacionais que defendem recursos comuns vitais da privatização, como água e biodiversidade; defender a eficiência no uso de recursos e energia bem como uma mudança da produção de energia com base em combustível fóssil para energias renováveis; encorajar o engajamento público na redução das emissões de gases estufa de modo a ultrapassar as metas da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, e trabalhar com as igrejas na adoção de políticas e programas em favor de povos afetados pela elevação do nível oceânico; fortalecer o movimento de ecojustiça que envolve a família ecumênica mais ampla.
As igrejas nas sociedades ricas e afluentes deveriam trabalhar visando o consumo sustentável e padrões de produção sustentável, adotando a moderação e simplicidade nos estilos de vida e a resistência aos padrões dominantes de consumismo.
Para garantir a vida no planeta precisamos construir uma nova forma de relações, um novo paradigma relacional. Deve-se pensar numa saída global, visto que se trata de uma problemática globalizada. E para isso, é preciso uma ética planetária, como afirma Leonardo Boff no livro Ethos Mundial: “É preciso estabelecer um consenso mínimo entre os humanos, que deve partir de uma visão ética, integradora e holística, considerando as interdependências entre pobreza, degradação ambiental, injustiça social, conflitos étnicos, paz, democracia, ética e crise espiritual” (p. 89). E para isso encontramos uma iluminação e uma base firme no texto da “Carta da Terra”, que permite “reafirmar a convicção de que formamos uma grande comunidade terrenal e cósmica”. E estando ameaçada a vida, a diversidade e a beleza de nossa “casa comum”, temos que realizarmos “uma nova aliança com a Terra e um novo pacto social de responsabilidade entre todos os humanos”.
Nas reflexões do Conselho Mundial de Igrejas sobre as mudanças climáticas, especialmente nos últimos dez anos, surgem duas questões básicas: “Quais são as prioridades em matéria de mudança climática?” e “Que testemunho as igrejas são chamadas a dar?” Emerge fortemente o desafio e o compromisso das igrejas através da solidariedade imediata para com as vítimas deste processo de transformações que o planeta vem sofrendo. Nesta última década o CMI priorizou também seu dever de acompanhar as negociações entre as autoridades competentes para fazer a humanidade agir frente aos fenômenos das alterações do clima. O CMI também defendeu a necessidade de se dar forte ênfase nas medidas de adaptação e proteção das pessoas vulneráveis aos perigos climáticos.
Solidariedade e sustentabilidade fazem parte do testemunho da fé cristã, por isso, a preocupação do CMI com as vítimas das mudanças climáticas, naturalmente, remete para uma abordagem transdisciplinar entre a justiça climática e os direitos humanos. Justiça climática “significa que ninguém tem mais direito de usar um bem comum global, como, por exemplo, o clima”. As igrejas podem colaborar na organização das sociedades onde estão inseridas, de tal forma que haja uma interação solidária da vida humana com a natureza. O ser humano tem direitos de acessos aos bens da natureza, mas é dele o dever e a responsabilidade por garantir o descanso da terra, seu direito de regeneração. Por isso todos os anos o CMI trabalha uma campanha chamada “Tempo para a Criação” que inicia no dia 1º de setembro por ser o primeiro dia do ano da Igreja Ortodoxa, estendendo-se até 4 de outubro, que é a Festa de São Francisco de Assis, na tradição católica romana e anglicana. É um tempo de oração, reflexão sobre o cuidado e o uso justo dos dons da natureza que recebemos de Deus, e assim, renovar o compromisso ecológico.
Na campanha “Tempo para a Criação” se utiliza como referência a data da Festa de São Francisco de Assis por causa do seu testemunho de harmonia com a criação, com o irmão Sol, a irmã Lua, a irmã Água e seu radical seguimento de Jesus no serviço aos mais pobres, como reflete o seu encontro com o leproso. “Tempo para a Criação” é uma oportunidade de refletir e se despertar para a mudança, a conversão ecológica, onde o ser humano possa encontrar seu lugar na criação. É um tempo de resgatar a esperança e reafirmar o compromisso ético de mudanças nas atitudes humanas para deter a injustiça climática. É o despertar para um olhar ecológico e holístico, onde o ser humano possa deixar a natureza ser ela mesma e assumir uma postura fraternal e amorosa frente a todas as formas de vida.
O CMI declara que “a Terra e seus habitantes não podem esperar mais”. Por isso conclama as igrejas membro e todo o movimento ecumênico, bem como, as outras religiões para “continuar orando e falando, expressando o grito dos pobres e da Terra nestes momentos cruciais”. Ressalvando que o trabalho ecumênico sobre mudanças climáticas está enraizado na totalidade da criação e no imperativo bíblico do compromisso pela justiça, que presta especial atenção aos pobres, fortalecendo as comunidades locais, para que elas próprias possam ter voz para articular suas demandas por elas mesmas, sendo sujeitos históricos.
O cristianismo, num movimento ecológico ecumênico, pode ser grande colaborador para que a humanidade assuma sua vocação de mordomo da criação. Conforme o Dicionário Aurélio, o termo “mordomo” vem do Latim [majordomu, “o criado maior da casa”], que significa “administrador dos bens de uma casa, de uma irmandade, de uma confraria, etc.; ecônomo” ou “serviçal encarregado da administração duma casa”. E na visão do CMI, este é o ser humano, o mordomo da criação de Deus. Devemos estar a serviço da vida e não usufruindo mais do que a natureza pode nos oferecer. Em Lucas 16:1, Jesus fala do mordomo denunciado por não saber administrar os bens da casa. Mas, Deus criou a Terra com recursos mais que suficiente para sustentar as gerações e todas as formas de vida. E o trabalho do movimento ecológico ecumênico é despertar para que a humanidade assuma sua vocação de mordomo da criação, da casa comum que é a Terra e de jardineiro do Planeta.
Para finalizar o terceiro capítulo da dissertação, mais uma vez linkamos a experiência do CMI com a Pastoral da Ecologia do Rio Grande do Sul, que tem o propósito de ser uma pastoral socioambiental e ecumênica, levando a ecologia para os espaços eclesiais a partir dos pobres, dos catadores, pessoas que vivem do “lixo”. Pois, a organização dos catadores e a questão da água são as duas frentes de atuação mais prioritárias desta pastoral que já tem 10 anos de existência, vinda de uma caminhada de mais de duas décadas quando Irmão Antônio Cechin começou um processo de organização dos catadores e carroceiros que viviam do e no “lixo”.
A Pastoral da Ecologia do Rio Grande do Sul tem uma forte sintonia com o Conselho Mundial de Igrejas e uma boa inserção nos meios ecumênicos, tendo militantes também de outras igrejas cristãs e outras religiões, principalmente as de matriz africana.
Concluímos com um sentimento de desafio ou convicção ou esperança de que, a partir da campanha “Tempo para a Criação” lançada pelo CMI, como um verdadeiro chamado para a conversão ecológica, podemos fortificar o movimento ecológico ecumênico no Rio Grande do Sul, uma Pastoral da Ecologia ecumênica e de diálogo interreligioso, como já acontece, por exemplo, na Romaria das Águas.
A Dissertação na íntegra estará disponível em breve na Biblioteca da PUCRS, para consulta virtual e também no Blog Olhar Ecológico.
Pilato Pereira
Um comentário:
Parabéns pela belíssima tese de Mestrado. Eu tb conheço sua Monografia de Pós graduação. Vou me inscrever para o Doutorado em Ciências da Religião e como tenho Mestrado em Boanica, minha Tese será baseada em Ecologia e seu blog é de grande ajuda.
Que Deus o abençoe.....
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